Lenda da onça – Borges

Já ninguém se lembra mais do velho Guedes, falecido há uns bons 25 anos com quase cem de idade. Contava com gosto, como um dos mais antigos homens de seu tempo, suas velhas e xistosas lendas com o sorriso e simplicidade de crédula criança com limpeza e graça tais, que não era muito possível a qualquer tentar uma dúvida que saísse de sua boca. Assim, em dias de bom humor, de pachorra e minuciosidades entre amadores de tradições, costumava contar uma das suas e cuja palestra ainda que um pouco desfigurada no fundo, todavia, corporizava-se por assim dizer em suas palavras sérias, calmas, inteligentes e inflexíveis.

— O Borges, de quem fui discípulo, dizia ele, era um vaqueiro ambulante, misteriosamente aparecendo por fazendas em ocasiões de difíceis vaquejadas em que pintava proezas admiráveis. Nos sertões do norte mineiro dele se fala ainda com essa crença supersticiosa cheia de infância e desalinho, marcando datas, lugares, perigos inimagináveis, quase impossíveis, salvando gerações, vivendo de todos e por toda a parte, sempre o mesmo, inextinguível. Franzino, mulato de mediana estatura, pouco idoso, falando pouco e muito descansado, sempre vestido de perneira e gibão, cavalgando eternamente uma égua muito feia e magra e ocultando a larga fronte, olhar expressivo e barba expessa e comprida sob um grande e desabado chapéu de couro — tal a figura simpática do Borges. Quase nunca era procurado, porque, boêmio dos campos, sua residência certa ignorava-se.

Amante de empresas arriscadas, maximé vaqueanas, sua presença dir-se-ia infalível onde e quando menos se esperasse. Fora, pois, num desses apertos, dizia o Guedes, de famosa vaquejada nos sertões do Urucuia, em uma das abastadas fazendas daquela região.

Vaqueiros os mais destemidos e avalentoados das redondezas de mais de doze léguas, haviam-se internado por dias em um campo quase impraticável, varejando-o em todas as direções; mas, o gadame alevantado e bravio inutilizava os mais ardentes esforços. O fazendeiro, julgando o número insuficiente, lançara um convite geral pelas circunvizinhanças a todo o indivíduo que soubesse manejar bem uma aguilhada para ajudálo,e esperava esse povo com impaciência. O dia estava marcado, anunciando-se també, seguindo o costume, um grande jantar. A notícia correu mundo. Sem demora, bandos de vaqueiros e outros populares, batendo a poeira das estradas, uns, a trote largo em fogosos cavalos, de pé, outros, com as selas à cabeça, acodiam ao chamado.

Entre eles alguns conhecidos do fazendeiro, e muitos não.

A casa borborinhava em uma festa de cumprimentos, palavreados, ditos xistosos, cantigas, arrumações e concertos de arreios, chelenas, aguilhados, perneiras, gibões etc, etc; numa promiscuidade fraternal.

— Três horas da tarde! Exclamara naquele dia o fazendeiro Antero Argollo — assomando à porta; quase hora do jantar, minha gente! Vocês hão de desculpar-me o que vou dizer. As atrapalhações e vexames têm sido tais que, por esquecimento, vai faltar-nos hoje o melhor da festa — uma pinguinha! Lembrei-me disto, mas, muito tarde. A que eu tinha acabou-se; e agora, paciência! Vou neste momento despachar um camarada para o arraial do Capão Redondo; e como daqui lá grozam-se umas boas quatorze léguas, só amanhã.

— Não senhor! hoje mesmo, se V. Sa. quiser. Eu vou buscar a cachaça.

— Como? perguntou admirado o fazendeiro, num arrebatado movimento de espanto e incredulidade.

E o vaqueiro repetiu fria e pausadamente sem pestanejar:

— Se V. Sa. quiser, eu vou buscar a cachaça e… pro jantar; acrescentou. O fazendeiro mirou o todo daquele homem de alto a baixo e sorriu-se.

— Ora, homem, se o jantar está quase a tirar-se e daqui ao arraial distam catorze léguas, como irá o senhor buscar essa cachaça? É um absurdo. Só de um doido.

E repetiu. Só mesmo de um doido, de um maluco.

A vaqueirada despejou a motejar. O vaqueiro baixou por instantes a cabeça, como se humilhado, e súbito, fixamente fitando o fazendeiro, replicou no mesmo tom:

— V. Sa. me dê o garrafão e o bilhete de ordem.

— Então quer?

— Vou!

— Homem de Deus, não se iluda. O senhor não refletiu bem, ou não quis ouvir melhor. Daqui ao arraial veja que são catorze léguas. Ida e volta vint’oito! Como forasteiro que é, nem de rumo sabe o senhor. Não se iluda, pois. Quer escutar? Senhores vaqueiros que me ouvem, quantas léguas daqui no Capão Redondo?

E uma voz geral se levantou do imenso povo: catorze!

— Já vê que em nenhuma hipótese jamais arriscaria uma aposta, ainda mesmo que valesse uma fortuna, para chegar aqui amanhã com hora marcada e no melhor dos meus cavalos, quanto mais para um jantar que está cheirando e já de toalha à mesa.

Todo o pessoal tomou o partido de Antero, procurando dissuadir o imprudente; porém este, imperturbável como sempre, retrucou:

— Mas V. Sa. se quiser, pode entregar-me o bilhete e o garrafão.

Nada mais, diante de uma teimosia inexplicável, impossível. Antero, homem de rasgos, num ímpeto de admiração, indagou-o ligeiramente do nome.

— Ventura, criado de V. Sa. para o servir.

Sem mais demora o temerário e impertinente fora satisfeito.

— Pois bem, sr. Ventura, visto querer buscar essa cachaça para o jantar, traga-me um garrafão de vinho. Aqui tem a ordem ao meu compadre Tibúrcio e terá cinquenta mil réis se chegar à hora do jantar, como afirma e parece-lhe.

— Sim, senhor V. Sa.; foi toda a resposta.

Tomou Ventura o seu animal, atravessou o pátio e a trote manquejante e desengonçado partiu, tendo atado cuidadosamente às costas o garrafão. Assim que viram-no sumir na orla do mato próximo, retalharam de motejos aquele pobre louco.

— Aquele tira leite em onça.

— E mama.

— E poja, ambos e dois: ele e a égua dele.

— Nessa eba ele não cai daquela tigela que arubu não qué mais.

— De certo; querê cumo, se a pobre égua vem c’os dente de fora que nem terra come. Não vi aquele pobre animal comê hoje um fiapo de capim.

— Aquela não come mais capim.

— Só se fô capim de égua!

— D’égua mêmo, apois de que será mais?

— Vai dá couro às vara no camim.

— Pobre égua, aquela nunca teve tempo de coçá nem de si ri.

— Nem corage.

— Ora, um gambá cheira outro: quem viu o dono, viu a dona; deixa lá que eles quando se encontram eles se entendem; ele mesmo é que sabe se o badoque dele bota longe.

Nesse interim, um escravo anuncia o jantar, cortando de vez a troça.

— Mas, minha gente, não me dirá donde saiu esse freguês? indagou Antero.

— É verdade, resmungou um dos presentes; freguês teba! mas, não é nosso conhecido, nem se sabe de que banda veio.

— Estou seriamente interessado por esse indivíduo tão singular. Parece um varrido, não tem dúvida!

Instantes depois, seguia-se o jantar. Os numerosos convivas tomavam seus lugares; uns entravam, enquanto o escravo que andara a chamar outros mais distantes ocupados em misteres diversos, anunciara — sim, senhor, a chegada de mais um vaqueiro.

— Bem! muito bem! mais um batalhador, Antônio! Quem será? Não o conheces?

— Não seio, nhor não, Ioiô. Quem quer que é ‘stá apeiano na porta cum garrafão na cacunda.

— Com um garrafão às costas?

— Nhorsim!

— Algum vendilhão de cachaça a retalho! Que fortuna! Ah! se eu adivinhasse!?

Nesse instante a lembrança do Ventura passou-lhe pelo espírito.

— Qual! pensou ele; que esperança!… Não pode ser; se o for, voltou do caminho; se voltou, não quero loucos em meu serviço. Despedi-lo-ia imediatamente se tal acontecesse. Nessa luta de pensamento, indagou duvidoso do escravo.

— Antônio, reparaste bem este vaqueiro?

— Ruparei, sinhô.

— Não será um dos nossos que daqui saiu, há poucos instantes com um garrafão pro Capão Redondo?

— Aí ‘stá, Ioiô! Não seio; não me achava á hora; mais é um vaqueiro, amontado numa égua magra.

— Que?! É este mesmo.

— É ele mesmo V. Sa. Desculpe-me vir entrando sem sua licença. Eu estava receando de que V. Sa. já estivesse jantando; porém o trato… trato! Aqui tem sua encomenda; creio ter chegado a tempo.

O fazendeiro não sabia que responder. Recebendo o garrafão, examinou-o detidamente. Era o mesmo e estava lacrado de novo.

— Ventura, desculpa-me a franqueza — então o sr. foi ao arraial do Capão Redondo, catorze léguas?!

— Pois não fui? V. Sa. quer maior prova, duvida? Se duvida, quebre o lacre e veja se isto é vinho ou cachaça.

— Não sou capaz; mas, neste caso o sr. assombra-me.

— V. Sa. não se assombre de tagarelas.

— De tagarelas?

— De tagarelas. Quero dizer que um homem do seu quilate não deve admirar-se de coisa alguma deste mundo, onde tudo é possível.

— Nem tudo.

— No possível, entenda bem, assim como neste caso tão simples.

— Tão simples!?…

— E natural! Deslacre o garrafão.

— Eh! estou vendo com os meus próprios olhos!

A vaqueirada trocista perdera a fala e a graça de todo, e agora pasmava-se de boca aberta num frêmito de admiração e respeito supersticioso.

— Só seno obra do cão.

— Isto mêmo. Este home tomou partes co’xujo. Cruz! cruz! cruz! tres vêis. Eu te desconjuro. Credico em cruz e azavesso.

— Queira Deus não seje ele o prope Luçofé! Ave-Maria, Ave-Maria! Cruiz! pé de pato! Vai-te pro máo Fridurico!

— Bamo-z’a vê premêro; botemo pra suntá: se aquilo não fô vim, será aluá que dis’que o capeta pôis pros massonco, no dia de quinta-feira maió e antonce se vê logo que o catingão d’enxofre levantá já, apois, não manca!

Nesse instante o fazendeiro, abrindo sua bela bolsa de couro, passava ao Ventura cinco moedas de ouro no valor de 50$000.

— E um pingo do vinho também; pois não tive tempo de prová-lo, disse o Ventura, rindo-se.

— Pois não! com muito gosto; mas, à mesa, que o jantar nos espera.

Deslacrou-se o garrafão.

Um cheiro suave tresandou pela sala, e o primeiro copo, a transbordar, foi entregue ao Ventura que prontamente o despejou à saúde do fazendeiro, acrescentando mais estas duas letras:

— Já vê V. Sa. que tudo isto não é, não pode ser obra do cão; não é aluá do capeta, nem tem catinga de enxofre. É bem bom este vinho, concluiu, estalando a língua de gosto.

— Ah! ah! ah! entreolharam-se resmungando, dois dos maldizentes de inda a pouco.

— Inté que esse home é adivinhão.

— O mió da festa é não se falá mais no arrispitivo, pruque neste rijume o home é um perigo.

— Nhorsim! E alhas qu’é isso mêmo. Nessas inculumensa é bão se calá mêmo.

Nesse ínterim, ouviu-se a voz de Antero: — Senhores, vamos jantar que está esfriando.

Enquanto vaqueiros e populares precipitam-se para a mesa, Antônio, o escravo de que falamos, é despachado secretamente para o arraial do Capão Redondo.

Correu alegre o festim e de nenhuma outra coisa mais se falou, senão daquela estupenda esperteza do Ventura.

A noite entrara na mesma toada. Ao romper da aurora todos se admiravam ver o Ventura já preparado, esperando a ordem de marcha.

— Gente, que home dos diachos! Em que hora foi ao campo, pegou e arriou este animale? indagara um.

— E outra cousa, notara também outro; aquela birivana p’la tunda de vint’oito légua que comeu onte, não dá conta do serviço hoje. Né mais égua de ninguém.

Com este dito concordou o fazendeiro que logo entendeu ser de bom aviso, apressando-se em falar ao extraordinário homem.

— Sr. Ventura, disse ele; queira desculpar-me. Há dias fizemos nós uma sortida pelo campo, porém, em pura perda. Hoje torna-se necessário um serviço bem feito. Este seu animal, se bem invejavelmente forte, viajou muito; pode não dar conta do recado, ao que parece-me. Temos animais possantes e descansados ali na manga; escolha-os à vontade.

— Não preciso, não senhor; aquilo de meu animal ja é de natureza e costume.

— Bem; não quero que haja reparos.

— Sou incapaz de pensar em semelhante coisa.

Calou-se o Antero. Traquejado e inteligente criara sem querer, sem sentir, uma espécie de respeito e simpatia pelo Ventura, se bem que muito desejoso de experimentá-lo ainda. Restava-lhe uma dúvida, mas, a hora estava dada.

Vaqueiros os mais afamados, ansiosos de se mostrarem, ganhando aplausos e confianças gerais, (e o que é mais) invejosos e despeitados com o Ventura, algazarravarn apressados, encilhando os ligeiros, fogosos e adestrados alazões, pretos, melados, ruços, que, escarvando a terra, impacientes olhavam para os ermos, nitrindo sob os freios. Mal foi dado o sinal, desapareceram numa disparada; somente Ventura o último a se afogar no turbilhão de poeira que escurecera a entrada para o campo e ninguém mais pensara nele. Vaquejada penosa e difícil. Gado, bravíssimo. Os logradouros espalhavam-se longínquos por emaranhadas catingas, carrascos, alpestres, catandubas, vazantes, alagadiços, bamburrais e serrados sem conta. Em ordem de uma batalha invadira-se o campo, como melhor meio de reduzir o gado em maior número e evitar destarte maiores fadigas. Belíssimo espetáculo de atrevidos lances vaqueanos por invios matos da floresta virgem, onde travejavam bois às centenas, arrancados à viva força de proezas invejáveis!

Aqui o gadame, muitas vezes depois de reunido em magotes vários, de repente se esparramava; acolá custosamente se o reunia; mais além apertado, espantava-se furioso, e mugindo terrivelmente, disparava.

Não obstante, valentes touros, acoados, escarvavam a terra, limitada de signos samões, traçados por simpatias pelos vaqueiros mestres. Urna vez dentro desses misteriosos signos, os bravios e livres filhos da floresta urravam sem transpô-los, quais se atravancados em fortíssimos e impenetráveis currais.

Os vaqueiros novos embriagavam-se dessas magias, aprendendo e assistindo a muitos touros derribados de rancor, enfezados, outros morrendo estripados em lances de eminentes perigos. Declinava já o sol desse dia de porfiada luta. Duas horas de descanso foram necessárias. O trabalho ia bem regular, embora o gado a reunir-se estivesse em começo.

No descanso entre assuntos vários de que se trataram, um fato extraordinário se comentara: o Ventura não aparecera.

Um dizia:

— Eu o vi cochilando em tal parte.

Outro: — ‘Stá dano de mamá à vara de ferrão no fundo desses carrasco.

Outro mais: — Eu topei ele mais a frepela dele botano gunzo pros arubu.

Aquele: — Um borra-bota; ele anda, mas, é imbodando só.

— Pabulage de vaqueiro, quem não stá veno?

— Embodando e botando gunzo pros urubus, eim? interrompera o fazendeiro, cortando as garras da maledicência; vocês não estão satisfeitos com a lição de ontem? Deus queira, não sejam vocês a levarem o seu gunzo e o da sua égua. Deixemos de chalaça.

— Lá agora, ist’é qu’é; confirmaram muitos ainda que dubiamente; alguns, porém, prosando roncavam nos peitos:

— Quem é ele?

— Tem poucas carne nos quarto.

— Ele, mais égua dele.

— Isto de viage são sampatia.

— São pauta.

— Todo mundo sabe disto; retrucou em seguida um machacaz de vaqueiro; cada um tem seus agigo: eu por imzemplo não faço isto, mas porém, faço outras qu’ele n’é capaiz.

— Olha! repreendeu o fazendeiro.

— É cumo stou lhe dizeno, meu patrão! Virô cupim, virô fôia, virô toco, virô tirira no mei da estrada limpa; e se o moleque de devera não fô mêmo desses marticulado, escopeteiro, apois, credite v. senhoria, qu’eu vou torano e deixo ele na varge, mamano na Paula. E tomo muitos dos que aqui ‘stão pru testemunha.

Algumas vozes: — É cacundeiro mêmo. É o malhó cacundeiro deste sertão; não tem outro. Até hoje ‘stá só; é o mest’e dos mest’e dos vaqueiro.

— Um! um! um! Oh! Oh! cambada de gente besta! Cruz! Maria!…

Aquele outro como é um pornosco, um canaia muito grande patacoada só! Mentiroso! Aquilo mente que acôa cachorro!

Assim murmurava baixinho um rapaz desabusado, denominado Zé do Mato, referindo-se ao tal mestre dos mestres.

O Antero gostara muito do dito xistoso do Zé do Mato e desafogou-se numa estrondosa gargalhada que desapontou bem aquele palavreado inútil, gritando em seguida:

— Senhores, vamo-nos embora; enterremos o pé deveras, ou nada faremos hoje. E a luta recomeçou com maior esforço possivel; mas, desde logo percebeu-se um desespero geral.

Touros encurralados e que maiores sacrifícios custaram, haviam transposto esferas e signos samões tão afamados do Urucuia, traçadas por mágicas aguilhadas. Caso virgem! Tudo perdido!

— Lá vai uma! xasqueou o Zé do Mato ao fazendeiro, que pensativo, conservava-se silencioso.

O tal mestre dos mestres enciumado e comendo-se de despeito, rangiu os dentes e alguém ouvira-o resmungar:

— Aqui hai dedo de mais!…

Descambava agora o sol para os chapadões e serranias azuis, e a tarde, tarde explendida, entornava-se vagarosa e solene, derramando uma poeira de luz e ouro sobre a floresta. Finda a campanha por esse dia, contentando-se todos com o pouco que puderam a custo arrebanhar pelos caminhos. As ave-marias chegavam e assim entravam no grande pátio, currais, mangas, tudo atarracado de gado numa berraria deliciosa.

Todos estacaram-se maravilhados e mais ainda o mestre dos mestres dos vaqueiros, vendo no centro do curral grande os belos touros bravos, os mesmos que prendera com suas simpatias.

— Lá vai outra! disse rindo-se o Zé do Mato.

— Eis aqui grande parte do meu gado! exchmou o Antero num assomo de entusiasmo. E rompendo a custo a massa enorme, contornando o pátio chegara até à porta; e sem apeiar-se, indagara dos escravos e de sua família por aquele feito, impossível quase.

Responderam todos, também cheios de assombro, ter sido o Ventura.

— Ventura? Ventura só… ou…?

— Ventura! sem mais outro.

— Desde quando aqui chegou?

— Desde o meio-dia.

— Meio dia?!…

— Meio dia!

— Onde está ele?

— Lá no rancho dos vaqueiros.

Não se deteve o fazendeiro, que num verdadeiro transporte de alegria, procurando o Ventura, cheio de agradecimento abraçou-o.

— Ora, não há de quê! disse este, rindo-se.

— Ventura, exija de mim tudo o que o senhor quizer e ver que esteja ao meu alcance.

— Nada e tudo V. Sa. simplesmente sua amizade. Eu pensava que seu gado era bravo mesmo, qual se me dizia, e não fora assim. Ah! é uma boa manada de carneiro; foi tocar-se e tudo seguiu caminho dos currais. Ficou um restinho que nada vem a ser. Isto a gente vai buscar amanhã. No mais acontece que essa meninada ainda não sabe trabalhar.

— Ventura, não basta minha amizade; já eu não sei como agradecer-lhe, tão emprazeirado estou pelo que acabo de presenciar em minha vida; longe daqui ninguém acreditará em semelhante fato. Dou-lhe o terço dos rendimentos de minha fazenda se o senhor quiser ser meu vaqueiro.

— Qual! isto nada quer dizer, desculpe-me; V. Sa. admira-se facilmente de tudo. Se eu não fosse tão ocupado, com certeza acceitaria sua proposta.

E Ventura, como esquivando-se ir mais adiante, cortou a conversa:

— Olha, o cargueiro que V. Sa. mandou ao arraial vai chegando. Antero ia protestar não ter despachado cargueiro algum; mas, não se animou.

Ventura neste momento tomava proporções de um gigante e dominava-o. Parecia de tudo saber.

Com efeito, era Antônio, o escravo que, como vimos dirigira-se secretamente ao Capão Redondo a mandado do seu senhor, a quem agora entregava uma carta, cuja obreia partira ele com a maior presteza.

Olhando a firma e reconhecendo-a real, detidamente lera

o conteúdo: isto é, seu compadre Tibúrcio cientificava-o ter recebido e imediatamente despachado o seu recado. Que o portador fora um vaqueiro de nome Ventura, assim, assim, de tal forma e estatura, montando uma égua muito magra, que dali partira cerca de quatro horas, mais ou menos, da tarde e o desculpasse finalmente não ter escrito por ocupações e ter o portador acusado muita pressa etc. etc. e tal. Concluída a leitura, não se conteve o Antero.

— Ventura, estou plenamente satisfeito. Convido-o desde já para tomarmos juntos um copo de vinho.

— Aceito-o pela bondade de V. Sa.

Ora a notícia logo correra de boca em boca, concordando-se que aquele homem não era um caxicoló qualquer, nem mesmo um vaqueiro vulgar. Seria antes um ente sobrenatural, talvez a alma d’algum finado vaqueiro em penitência pelo mundo, e daí muitas lendas e historietas do gênero que surgiram entre aquela gente crédula, supersticiosa.

E, alma penada, gênio, ou quer que fosse, o Ventura, alvo de aclamações, sentou-se ao lado do sr. Antero em um lauto jantar, comeu a valer e sobriamente virou o seu valente copo de vinho, correspondendo a um brinde do dono da casa.

Só um indivíduo não gostara de toda aquela festa: o mestre dos mestres.

— Ei! ria-se a bom rir o Zé do Mato, eu bem dizia. Já tu topou a fôrma do teu pé, maludo, surrão de ernbira!?

Um colega indagara à socapa:

—Que é?

— Que é?! Você ainda progunta? Pois não vê que o tal mestre dos mestres está todo dali enfezado?

— Ah! sim; agora é que noto. Que cara de quem comeu e não gostou! Que será?

— A pauta dele, homem, foi hoje quebrada!

Este murmúrio correu em toda a mesa; mestre dos mestres, exasperado deu partes de doente, retirando-se. Em seu Cavaco, apesar da opinião geral em contrário, o Ventura não passava de um grande feiticeiro, sabedor da rnandraculas; e com certeza, agora, mais que nunca, tinha tomado partes c’o cão; por isso é que dera conta d’aquela viagem impossível, e arrebatara, reduzindo com rezas fortes, todos os touros que ele com trabalho amarrara, conduzindo-os por artes do capeta tão facilmente aos currais.

Bem! Toda a noite em festas!

Amanhece.

Ventura que até então não se aventurara à menor palavra de contestação ou de enfado, pretextara uma doença qualquer; porém, falando sempre em ir também ao campo. Sabedor disto, o fazendeiro esforçou-se para que Ventura tomasse um descanso, pois, muito trabalhara.

— Vou, disse ele. É necessário; existem touros em diversos logradouros e careço dos serviços de todos os companheiros.

E uma voz geral ecoou:

— Estamos às ordens do mestre Ventura!

— Mas, eu não sou mestre. Como ia dizendo, quase não podia ir, porque um maldito reumatismo atacou-me esta noite…

— Oh! neste caso, atalhou Antero, deixemos o campo para amanhã, mesmo porque é necessário acomodar ainda o gado que anda por fora das mangas.

— Não se incomode V. Sa.; o gado que o senhor vê, não sairá daqui para parte alguma. Vou ao campo porque quero acabar com este serviço. Tenho um trato certo com uma pessoa a quem não devo faltar. E virando-se para o mestre dos mestres, pediu-lhe o favor de ir buscar o seu animal, acrescentando com certa amabilidade: não lhe dá trabalho, não; ouviu? É um favor que fico a devê-lo. Toma a brida e é quanto basta. É uma égua muito mansa, estou daqui quase enxergando-a. O senhor volta já.

— Sim, senhor! respondeu contrafeito mestre dos mestres; com muito gosto!

— Ficar-lhe-ei muito agradecido.

Mestre dos mestres correu ao campo, virou-o, e revirou-o, nemexeu e esquadrinhou toda a moita que viu, todo o tabuleiro vizinho e voltou de mãos vazias.

— Não achei!

— Não achou como?

— Não achei a égua em parte alguma.

— Homem, com efeito! Olha lá? e apontava para o campo: lá está ela! A vaqueirada olhava para o rumo apontado, sem nada divisar.

— Nenhum dos senhores está vendo-a?

E todos se calaram, entendendo que o mestre dos mestres não queria servir de criado. Muitos se ofereceram para buscar a égua.

Ventura agradeceu, por ter pedido já a seu amigo, e este de boa vontade se prestara aquela fineza. Não quisera papel feio, portanto.

— Não é porque não queira, disse ele, e sim porque não encontrei em parte alguma seu animal, apesar de tê-lo procurado muito aqui nos arredores. Em todo o causo, irei segunda vez. E foi e nada. Embirrado, tentara terceira vez com os mesmos resultados.

— Eh! exclamou Zé do Mato, vendo-o chegar: voltou c’uma mão na c’ronha e outra no traquete.

Neste momento todos os vaqueiros se abalaram em busca do animal; mas, Ventura os deteve.

— Não consinto tamanho sacrifício por uma coisa de nonada Eu cuidava que este amigo era mesmo mestre dos mestres. Agora, vou eu mesmo. Esperem-me aqui. Faça o favor dar-me esta brida?

Mestre dos mestres entregou a brida, já muito desafinado.

Num abrir e fechar de olhos Ventura desaparecera entre uns arbustos, e à vista de todos entrara no pátio, puxando a égua, selando-a imediatamente sem mais palavra.

Mestre dos mestres roía um ferro e arrastava um couro desgraçado; porém, cego de orgulho, não se dava ainda por vencido

Arrastou sabenças diante dos companheiros que dele riam e do seu desprestígio, portanto. Dada a hora, novamente partiram. Ventura tomou o rumo de um logradouro, onde de véspera deixara preso um dos mais valentes e bravos touros da fazenda, e ao aproximar-se do logar advertiu:

— É ali e daqui se o vê bem.

O mato, em forma de um curto bosque, abria-se numa linda clareira, cujo pó revolvido, espalhava-se fresca brisa, recamando-o na folhagem como um fluido aéreo, ferido pelos raios do sol.

— A maré está subindo rapaziada! Quero ver a madeira rolar! exclamou Ventura com entusiasmo.

Na verdade um enorme touro, escuro e reluzente circunvoluía na estreita planície, escarvando e estremecendo a terra com seus mugidos de fera. Houve um momento de indecisão para atacá-lo; mestre dos mestres viu isto e não contou fiado.

— Não vá não, senhor! Não vá que já o vi fedenido! gritou Ventura!

— Veja tatu pra que cava e o diabo cumo attenta!… ôh! defunto feio! gracejou Zé do Mato. O perigo era evidente e a vaqueirada gritou também aquele louco; mas, o soberbo não quis escutar, não esteve pelo aviso, arrojando-se a todo o galope para o abismo.

Mal transpõe o signo vaqueano, largamente traçado era torno do touro, este o investe de tal maneira rápida que em poucos segundos mestre dos mestres e o seu cavalo embolam-se na mesma poeira. Morre o cavalo, e o teimoso escapa-se, acodindo-o em tempo Ventura, a quem agora deve a vida. O touro conteve-se dentro do signo, não ousando atacar, nem tampouco transpor a misteriosa barreira. Ventura fingia-se agastado.

— Aí está. Se eu bem disse, melhor saiu. Caiu redondo! Eu não quero mais isto; este vaqueiro é muito presunçoso e pabulagem o come de uma assentada.

E, apeiando-se junto ao signo, sacou do pé uma das esporas e atirou-a contra o touro. Este curvara-se imediatamente tão manso, como um cão aos pés do seu senhor.

Ventura, estendendo a dextra, foi direito à fera, batendo-lhe no dorso três pancadinhas: — Sossega!

Voltando-se para os companheiros, proibiu-lhes terminantemente atacar os demais touros que dali por diante aparecessem presos. Em busca de outros logradouros, repetiu ele as mesmas façanhas com igual precisão por diversos sítios, aqui atirando a última espora, ali uma pedra, e acolá um pau, uma folha verde, além o chapéu, o gibão, o chicote, a aguilhada, um ramo qualquer, conduzindo, enfim, sem o menor incidente aos currais, esse bando selvagem e perigoso.

Finda a vaquejada ao declinar o sol do meio-dia.

O mestre dos mestres já desabusado, fora o último a chegar à casa pela tardinha, envergonhado, confundido, com sela à cabeça. Arriando a carga, procurou o Ventura.

— Vancê me queira perdoá. Seio que lhe devo a vida, abaxo de Deus e venho lhe agardecê; pelo que, eu e todos nóis temo visto e ouvido, indêsna que vancê aqui chegou, se pode se dizê que vancê é o Borge de fama.

— Não tem que agradecer, respondeu Ventura, tranquilamente rindo-se e do mesmo modo acrescentou:

— Sou simplesmente — Borges —, porém, sem fama, um criado para o servir. A estas palavras mestre dos mestres ajoelhou-se, pedindo perdão.

Zé do Mato não se conteve:

— Êrre diabo! conheceu malungo?!

Quem puxa fole é ferreiro.
Ferreiro é quem puxa fole.
Você foi de cabo teso,
Mas, voltou de cabo mole.

Houve urna gargalhada geral.

— Eh! Só Deus pode ser o mestre dos mestres. O que te fiz foi muito de propósito para arrancar-te a soberba que daria cabo de ti, quando menos esperasses. Levanta-te que não sou santo! Como te chamas?

— Me chamo Sarapião, um creado de vancê.

— Já o sabia. Contenta-se com isto só, e não caia mais em outra!

— Nhorsim! Nunca mais!

Qual se vê a descoberta do Borges fora um grande acontecimento: fazendeiros, vaqueiros, camaradas, escravos e outros populares cercaram de atenções aquele homem famoso em todo o sertão e que, envolto sempre em um misto de lendas e de incertezas ali estava em carne e osso.

Quiseram detê-lo por mais tempo, porém, recebido o seu salário, retirou-se no mesmo dia, indo pernoitar, muitas léguas dali em casa de uma viúva muito rica daqueles arredores e cujo marido falecera de pouco tempo.

Borges não fizera trato algum, como dissera antes ao Antero; mas, sabendo que essa viúva estava quase a enlouquecer por ter-lhe desaparecido um cavalo da estima de seu marido, muito de indústria lá se fora arranchar.

O vaqueiro da fazenda, bem como agregados escravos e particulares noticiavam que o tal cavalo morrera nuns atoleiros, dele restando apenas ossadas; mas, a viúva, obstinava-se em crer o que de fato era verdade, prometendo duzentos mil réis a quem dele desse conta.

Apesar disto, a promessa nada adiantara.

Na opinião da viúva o animal estava bem vivo; no mais, sabia que queriam roubá-lo, e aquela gente vizinha andava a usar de patranhas. Aquela teimosia, filha de um pouco de loucura, bem pronunciada pela perda do marido, tolerava-se.

Desculpavam-na.

Grande, portanto o seu regozijo pelo aparecimento do Borges, dando-lhe notícias do cavalo, que segundo afirma­va, estava vivo e bem vivo.

— Disto bem eu sabia. Esta corja come o meu dinheiro, engana-me e, ainda em cima quer roubar o cavalo da estima, que foi, de meu marido; pois, se o senhor o trouxer aqui à porta, eu sustentarei o que já disse. Darei os duzentos mil réis.

— Pois, sim senhora! Eu quero somente o prazo de… até amanhã.

— Depois de amanhã, se lhe convier; contanto que o senhor m’o traga.

— Pode ter fé em mim, que ele virá. Conhece-o bem a senhora?

— Ora se o conheço! Como as palmas de minhas mãos. Desapareceu da estrebaria e até dias que foi hoje.

Borges retirou-se.

Na manhã seguinte, como prometera, ei-lo à porta da viúva, trazendo pelas rédeas um bonito e luzidio castanho escuro. Reconhecendo o animal de tantos cuidados e sacrifícios a fazendeira e rica senhora dera saltos de alegria; sem mais tardança, cheia de agradecimentos pagara ao Borges os duzentos mil réis em prata e ouro, além de alguns presentes que, embora recusasse-os, fora obrigado aceitar.

— Agora que está a senhora livre do susto de perder animal, vou-me embora, disse o Borges. Recommendo-lhe muito que, quando for ao meio-dia, se este animal sentir sede, mande dar água e lavai-o; quem for tratar desse viço, de modo algum (veja bem o que lhe digo), de modo algum tire-lhe a brida que tem. Até que por hoje não precisa ele comer; e adeus! até outra vista!

— Até outra vista! Ontem, quando o senhor aqui chegou, conversamos; mas, foi com tanta pressa que esqueci-me… passou-me pelo sentido de perguntar…

— Pelo meu nome, não é assim?

— Sim senhor! isto mesmo!…

— Meu nome, senhora dona, é Firmino; mas me chamam Firminão.

— Mal aplicado! O senhor é pouco fornido… pois, senhor Firmino, eu aqui estou e estarei às suas ordens.

— Reconheço, minha senhora, e não dispenso o favor.

— Onde o senhor mora, aindas que mal pergunte?

— Pergunta muito bem, senhora dona! Meio do Mundo!

— Meio do Mundo!?… É fazenda?…

— Sim, senhora!

— Meio do Mundo!… Que nome esquisito! E murmurava ainda quando Borges já estava longe, cavalgando sua égua magra. Reposta qual se de um sonho, chamou um escravo, mandando-o conduzir o cavalo para a estrebaria.

— Amarre-o com a brida que tem; não a tire! Vá, depois, chamar o vaqueiro. O escravo cumpriu a ordem da senhora, e, instantes depois, o vaqueiro, bem como todas as pessoas de casa e da vizinhança, certificados do ocorrido, pressurosos foram ver com os próprios olhos a inacreditável notícia. Com efeito, o cavalo, o mesmíssimo em carne, osso, cor e ferro do seu dono!

A viúva não cabia em si de contente, alisava e mirava-o, atribulada de penosas recordações, repassadas de lágrimas.

Chamando de novo o escravo, fez-lhe com severidade as mesmas recomendações do Firmino: — Nenhuma ração!

Ao meio-dia, porém, subindo de ponto o calor, o animal sentiu-se vexado; disto avisada pelo escravo, ordenou que este o lavasse a uma aguada próxima e não tirasse de forma alguma a brida.

Assim o fez; mas, uma vez ali, morto de sede o pobre animal não sorvera a menor gota d’água. Tolhia-o absolutamente a brida, e tal sua insistência, que o escravo teve dó e afligiu-se muito. Contra a ordem que tinha, imprudentemente livrou-o daquele estorvo; mas, sob um grito de assombro!

Em um instante desaparecera o belo animal e a seus pés, num desmantelo ruidoso, tombara na água o esqueleto completo do cavalo de sua senhora. Voltando de carreira à casa, fielmente referira todo o ocorrido, não só à viúva, como às demais pessoas da redondeza, que, apressadas, dirigiram-se ao local. Uma vez diante da realidade, exclamara a desditosa:

— Diabos te levem pros infernos do teu Meio Mundo, Firminão! ladrão de todos os diabos!

E de fatos como estes, incríveis, extraordinários enchia-se o sertão; por exemplo: a mudança de um bosque para lugar diferente, pescas de peixes em paragens absolutamente secas etc. etc. Por muitos anos sem outra coisa mais se falara senão no Borges. Um dia a tiros e chuços uma onça, que zombara de todos as esperas e ardis, morria em um grande fojo, aberto cautelosamente à porteira de um curral de fazenda. E essa onça, terrível, devastadora, fora reconhecida:

— O Borges!

* * *

Pastoreava uns gados o famoso vaqueiro por uns desertos, onde se embrenhara com um auxiliar seu discípulo e amigo. Cinco dias eram decorridos e eles mortos de fadiga, de fome e sede. Exaustos e sem tempo de tornar à casa por muito longe, apertava-os mais e mais a penúria.

Borges era forte e destemido; queria, além disto experimentar e ao mesmo tempo preparar seu discípulo, que não primava muito por aquelas qualidades.

— És muito fraco, meu rapaz! Tenho dó de ti. Sentes muita fome, não é assim! Coragem! Aprenda ter coragem! Agora mesmo vou matar aquela novilha gorda que ali vês; terás ocasião de testemunhar uma das minhas, e porque estimo-o muito, quero ensinar-te o que ignoras. Vou tornar-me em uma onça canguçu; sangrarei a novilha; beberemos depois o sangue e não faltará mais carne boa fresca, seca e gorda. O discípulo arregalou muito os olhos.

— Não te admires, se prometes-me não ter medo, tanto melhor; provar-te-ei o que disse, e para que não duvides um instante, espere um pouco aqui. E entrou para um serrado, onde demorou-se algum tempo. O discípulo tremia, apesar da muita confiança que depositava no mestre; parecia-lhe vê-lo surgir na verdade, como onça, daquele antro.

— Toma este maço de folhas; agora, você vai ver-me, mas pura onça. Matarei, como disse a novilha e voltarei para você com a boca muito aberta. Nada de medo, moço! Aperte bem este maço de folhas na mão, e quando me dirigir para você, sem deixar cair uma só, tire do meio esta folha (e indicou-a); coloque-a na minha língua sem demora e eu me transformarei logo. Se você não tem coragem, seja franco; do contrário, não me arriscarei a semelhante sacrifício. Entrou Borges segunda vez no serrado e não tardou que dele saltasse um disforme canguçu, que, investindo o gado, derribara a mencionada novilha, sangrando-a num volver de olhos. Saciada a sede, escancarou as fauces o canguçu em busca do discípulo. Este, tomado de pavor, de há muito fugira a todo o pasmo.

A onça o perseguiu por toda a parte durante muitos dias e sem resultado. Caçadores que andavam por longínquas e ermas esperas de veados e antas, muitas vezes falavam de uma onça singular que conversava a sós nos desertos. Dizia-se que era mentira de tais caçadores.

Em breve, pelas fazendas aparecera uma terrível mortandade de gados. Uma onça descomunal, atrevida e valente assolava essas regiões atacando currais que os não haviam seguros em parte alguma, até que tragicamente viera cair e acabar-se em um desses, de modo porque sabemos, sendo reconhecida nesse dia pelo discípulo traidor que, pesaroso assistira ao triste desenlace. A onça depois de uma luta desesperada, conseguira transpor o fojo que lhe fora preparado; mas, para morrer atravessada nos chuços, zagaias e muitos tiros certeiros de calvinas. Naquele duro momento, conta-se, que ao dar com os olhos no ingrato discípulo que ali se achava entre os matadores, soltara um terno e prolongado gemido que nada tinha de selvagem, seguido do ultimo suspiro.

Ambrósio, Manuel. “A onça Borges”. Brasil interior; palestras populares, folclore das margens do São Francisco: Januária, Minas Gerais, 1912. v.1, São Paulo, Nelson Benjamin Monção, 1934, p.30-50